Sobre o CABio, Autogestão e Revolução

A resistência legítima em prol do autogoverno, da autodeterminação e da autodefesa representam a maior luta pela liberdade que se pode exercer.
 
Neste semestre, a legitimidade do funcionamento em autogestão do Centro Acadêmico de Biologia da UFSC (CABio) foi questionada por militantes da Juventude Revolução (JR) e estudantes independentes. Há mais de dez anos o CABio não realiza processos eleitorais, mas continuou realizando reuniões periódicas, cumprindo suas tarefas de organização, mobilização, recepções, ações de extensão, defesa estudantil ou participação nos eventos do Movimento Estudantil de Biologia do Sul do Brasil. O CABio é historicamente construído por dezenas de pessoas, a média de participação nas reuniões semanais, ao longo dos últimos três anos, girou em torno de dez a vinte pessoas, algumas com mais de trinta pessoas, entre uma maioria não vinculada a organizações políticas e também estudantes organizadas. A  União da Juventude Comunista (UJC), o Coletivo Anarquista Bandeira Negra (CABN), a Juventude do PT (JPT) e a Esquerda Marxista (EM) são alguns dos grupos que já participaram da construção do CABio ou estiveram presentes em atividades puxadas por ele. No entanto, graças a estudantes independentes que tiveram participação ativa nos últimos anos, o CABio nunca dependeu de nenhum dos grupos citados acima para funcionar; pelo contrário, em vários momentos continuou cheio e atuante mesmo sem participação de nenhuma organização política. Desta forma, nós, da Coletiva Centospé, que participamos do CABio desde antes de nosso grupo surgir – no final do ano passado, gostaríamos primeiramente de saudar a diversidade de posições que sempre esteve presente dentro do Centro Acadêmico.
 
O modelo de funcionamento autogestionado não havia anteriormente impedido a construção coletiva, mesmo por organizações que – ao contrário de nós – não defendem a autogestão como princípio e horizonte político. Foram mais de cem estudantes que passaram por reuniões do Centro Acadêmico nos últimos três anos, pessoas que construíram a entidade e diversas lutas através da autogestão. Ao contrário de ser o que possibilita a pluralidade nas discussões e nas construções, como se vê pelo histórico do CABio, a autogestão agora é apontada pela JR como uma forma que impossibilita a definição de um programa de lutas ou de um horizonte revolucionário, além de não ser democrática como seria um processo eleitoral. A JR é uma organização de juventude vinculada à corrente trotskista O Trabalho (OT), o qual faz parte do Partido dos Trabalhadores (PT). Vale ressaltar que essa organização tem militado nos últimos meses com centralidade na candidatura de Lula em 2018.
 
Por isso, queremos aproveitar esse momento para aprofundar o que entendemos por autogestão, como meio e horizonte de luta na construção de uma sociedade organizada desde baixo, permeada pela autonomia. Além disso, queremos pontuar por que consideramos o CABio autogestinado um espaço legítimo, em sua organização e ação.
 
O que a Centospé defende quando fala de autogestão?
 
A palavra autogestão é relativamente recente na história das lutas sociais. Seu primeiro uso provável foi nos anos de 1950 na Iugoslávia socialista, como oposição ao modelo de forte centralização, expansão industrial e imperialismo soviéticos. Nasce para língua, portanto, em servo-croata: samoupravlje. Entretanto, antes de ser palavra, já era prática. Herança histórica das lutas dos povos oprimidos, a autogestão esteve presente no funcionamento da Comuna de Paris em 1871, a primeira experiência de autogoverno inspirada no socialismo da história; também entre sovietes livres da Revolução Russa (1917); e na Revolução Espanhola em 1936, quando a cidade e o campo foram organizados de baixo pra cima.
 
Mais do que esses exemplos, vemos a autogestão viva como palavra e prática ainda hoje, desde Chiapas até Rojava. Ela vive com indígenas zapatistas no México, que praticam uma revolução de autonomia e autogoverno desde 1994; também vive na Revolução Curda, que estabeleceu vastas áreas de autogoverno entre a Síria e Turquia, a partir da democracia de base, da participação feminina, do anticapitalismo e da negação do Estado. Além disso, aqui mesmo no Brasil, ocupações de escolas e universidades em 2015 e 2016 foram construídas de forma autogestionada. Na maioria das escolas, as decisões foram tomadas pelas próprias estudantes de base, que pegaram na mão a tarefa da ação política, ao invés de delegar a função para outras representantes. Então, quando se ataca a autogestão em 2017, o que se está atacando também é o legado das maiores lutas estudantis das últimas décadas.
 
Acreditamos, então, que a autogestão não é apenas um método ou formato de organização, mas a negação do princípio político da representatividade burguesa, onde nossa capacidade política é entregue para outra pessoa, como uma alienação da nossa força de pensar e agir politicamente. Trata-se, portanto, de um método fundado na autonomia, o que propicia a atividade criadora individual e coletiva, possibilitando que novas relações sociais sejam tecidas ali e também que novas estratégias de luta surjam. Isso tudo graças a autonomia advinda da não-hierarquização de sujeitos a quem não competem posições fixas de trabalho: na autogestão há a necessidade de superar as dicotomias entre o trabalho manual e o intelectual, entre as pessoas que só pensam e as que só fazem, entre as dirigentes e as executoras. Adotamos, pois, a autogestão como um princípio porque ela é um bom método para as lutas que agora travamos, mas principalmente porque ela é um horizonte revolucionário de sociedade, com o autogoverno das classes oprimidas. Se os fins são esses, não podemos escolher outros meios. E é por isso que negamos as formas organizativas que nos eduquem em sentido oposto ao desejado.
 
CABio e a construção de um horizonte
 
Sem chapas nem campanhas, o CABio alcançou legitimidade e direito para representação estudantil no Conselho do Centro de Ciências Biológicas (CCB) e Colegiado de Curso, onde teve participação ativa e decisiva nos últimos três anos, muitas vezes contra a Direção e setores elitistas, tecnocráticos ou produtivistas de professores. Foi por luta e legitimidade da representação estudantil desse CABio autogestionado que o CCB foi um dos únicos Centros que votou contrário à cessão do HU para a EBSERH, mesmo quando a antiga Diretora era do campo político da antiga Reitora. Foi por campanha dessa mesma representação que o CCB foi favorável à paridade na última eleição de Reitoria, mesmo quando dezenas de professores se organizaram para defender que seu voto valesse 87 vezes mais que o nosso. Foram as cadeiras do CABio, incômodas mas legítimas, que mudaram os rumos do Regimento do CCB nesse ano e que defenderam uma concepção de extensão universitária minimamente popular, contra interesses produtivistas e sem retorno da UFSC para uma comunidade outra que não a científica.
 
Além disso, foi esse CABio autogestionado que puxou uma forte campanha pelo boicote do ENADE em 2014, questionando os critérios meritocráticos da avaliação do MEC. Também teve participação ativa durante a luta em defesa do HU 100% SUS, mandando delegação para o Seminário Nacional Contra a EBSERH e mobilizando no CCB uma das maiores rejeições proporcionais no plebiscito sobre a mesma. Em 2015, puxou uma greve estudantil de uma semana contra os pesados cortes de verba na educação realizados pelo Governo Dilma e nesse mesmo ano, constituiu uma rede de solidariedade no Curso ao Movimento Ponta do Coral, ajudando a conquistar um fundamental apoio institucional da Universidade a essa causa popular.
 
Em 2016, puxou uma nova greve estudantil contra os ataques do Governo Temer. O CABio, único CA do CCB, mobilizou sozinho a ocupação de um dos seus prédios durante a onda do final do ano passado: uma ocupação que teve participação diária de cerca de quarenta estudantes e formou dezenas de militantes. Ano passado, ainda organizou o Encontro Regional Sul de Estudantes de Biologia na comunidade tradicional dos Areais da Ribanceira, em Imbituba, apoiando a luta pela terra na região, atacada por empresas transnacionais e pela Justiça elitista. Em 2017, esteve presente em peso nos atos e ações das duas Greves Gerais; e dentro da universidade colocou-se contra o aumento do passe do RU para as trabalhadoras terceirizadas e no combate às ações higienistas da DESEG contra pessoas que moram no campus. Nesse semestre, o CABio deu apoio para a ocupação do INCRA pelo movimento quilombola e foi fundamental na mobilização contra o Marco Temporal, dando apoio logístico e financeiro para a vinda de companheiras e companheiros indígenas do norte do estado para o trancamento da BR-101 próximo a Aldeia Itaty – Morro dos Cavalos. Durante todos esses anos, o CABio também foi apoiador do Estágio Interdisciplinar de Vivência (EIV-SC), ajudando junto à Via Campesina com finanças, organização de festas e participação em suas atividades.
 
Organizar uma entidade estudantil por autogestão não é a revolução, nem é por si só garantia de grandes vitórias ou avanços na luta. É preciso um processo contínuo de debate, formação e autocrítica, em detrimento a individualismo, passividade, não-participação, ausência de diálogo e disputas motivadas por interesses próprios ou de grupos. A autogestão não funciona se for prática espontaneísta, em que cada pessoa faz o que quiser, assim como não funciona na ausência de acordos comuns ou na falta de responsabilidade com as tarefas necessárias ao coletivo. A autogestão só funciona como esforço de superação dos valores capitalistas e neoliberais.
 
Não se trata apenas de fazer reuniões abertas ou não ter uma presidência formalizada em documento, mesmo que isso represente um avanço frente às formas mais autoritárias de gestão. Trata-se, principalmente, da prática de diálogo e construção coletiva que um espaço não-hierárquico promove, baseado na autonomia de cada pessoa em formular as propostas, colocá-las em debate e implementar as decisões dentro do coletivo. Um processo rico e contínuo de aprendizado e formação política, que se dá no CABio e que possibilita a pluralidade e quantidade de lutas que essa entidade conseguiu travar nos últimos anos. A história do CABio é a sua própria legitimidade, dentro da autogestão e na construção de uma sociedade desde abaixo e à esquerda.
 
Quem quer desmerecer, deslegitimar ou mesmo boicotar o CABio, vai encontrar grandes parceiros na Direção de Centro, na DESEG e seu projeto de limpeza social da UFSC; na Votorantim que devasta os povos e a natureza de Imbituba, nos latifundiários de todo o Estado e na empreiteira Hantei; no vereador Pitanta (DEM) que mobiliza a reação anti-indígena na Palhoça, no Governo Temer e seu projeto de guerra aos pobres. Nós estaremos decididamente do lado oposto, onde sempre estivemos.
 

Por isso, nos colocamos por um CABio cada vez mais forte, cada vez mais próximo das lutas sociais, com cada vez mais diálogo e participação. Defendemos a aprovação de um novo Estatuto, que supere as limitações antigas, reforce a autogestão e que dê mais força e capacidade para voltar a dedicar todos os esforços na luta estudantil e popular.

Longa vida à autogestão do CABio! O tempo urge!

MAIS FORTES SÃO OS PODERES DO POVO!

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